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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Intervenção nas Perturbações Articulatórias

A intervenção nas perturbações articulatórias consiste, por um lado, na criação de uma situação de aprendizagem (i.e., ensinar o som-alvo) e, por outro lado, na criação de uma situação de desaprendizagem (i.e., eliminar a articulação incorrecta levando à compreensão do erro).
As metas da intervenção são:
1. Consciencialização das características dos sons-alvo e reconhecimento dos erros;
2. Produção e estabelecimento dos sons-alvo;
3. Estabilização/reforço do uso dos sons-alvo isoladamente, em sílabas, em palavras e em frases;
4. Transferência (i.e., ser capaz de usar os sons-alvo na fala espontânea de todos os tipos e em todas as condições), manutenção e transposição.

Em situações onde a produção de mais do que um fonema se encontra comprometida, é necessário estabelecer prioridades na intervenção. De acordo com cada caso, a intervenção pode iniciar-se ou com aqueles fonemas que em certos contextos já são produzidos correctamente, ou com os fonemas mais simples, ou com os que são adquiridos mais precocemente, ou com aqueles que respondem a uma maior estimulação.

Há diferentes abordagens de intervenção nas perturbações articulatórias. A escolha da abordagem a adoptar deve ser ponderada e adaptada à especificidade do cada caso...

Modificação do Comportamento

Os pressupostos teóricos desta abordagem são os do condicionamento operante. Aqui, o terapeuta deve começar por estabelecer uma hierarquia de tarefas de discriminação. Nesta hierarquia é aconselhável começar com as tarefas mais fáceis e progressivamente ir passando para as mais difíceis. O terapeuta tem de estabelecer linhas basais utilizando o progresso do paciente como critério para que cada etapa seja atingida com sucesso. O papel do terapeuta consiste em apresentar pares de sons, sílabas ou palavras dando um reforço ao paciente sempre que ele identifica correctamente que se trata do mesmo som ou de sons diferentes. Este reforço pode ser material (e.g., uma bola) de modo a permitir que ao fim de determinado número de aquisições seja possível trocar por um prémio.
A principal desvantagem deste método de intervenção prende-se com o facto de se o paciente não chegar nunca a discriminar ou a produzir o som-alvo, nunca será reforçado.

Traço Distintivo

A ênfase da terapia são os traços distintivos e não os fonemas. A nível da intervenção o terapeuta deve começar por ensinar o paciente a discriminar e a produzir o traço desejado em posição inicial de uma sílaba inventada. A produção é feita, num primeiro momento, através da imitação. Deve haver uma preocupação em tornar claro os contrastes entre fonemas estridentes/não-estridentes, vozeados/não vozeados, . . . De seguida, deve-se generalizar o traço a outros fonemas para depois usar o mesmo procedimento com fonemas em posição final de sílabas inventadas e em palavras.
A abordagem do contraste mínimo tem como objectivo principal explicitar ao paciente que a função dos sons da fala é a de diferenciar as palavras do ponto de vista do sentido. Desta forma, inicia-se ao nível da palavra usando contrastes mínimos que sinalizem mudanças de significado (e.g., pato/cacto, bola/gola, fava/vaca). Os pares mínimos são pares de palavras que partilham, pela mesma ordem, o mesmo número de segmentos sonoros diferindo apenas num som sendo essa diferença apenas relativa a um único traço distintivo. Do ponto de vista da intervenção, esta passa por quatro etapas fundamentais onde se procura levar o paciente a:
1º entender que duas palavras contrastantes diferem em significado;
2º ouvir que os pares de palavras são diferentes (aqui o terapeuta pode, por exemplo, nomear figuras e pedir ao paciente para apontar para a correcta);
3º produzir as palavras (pedindo-se agora ao paciente para ser ele a nomear as figuras);
4º usar as palavras em situações de comunicação.

Terapia Tradicional

A terapia tradicional baseia-se na realização de quatro actividades sequenciais: o treino sensório-perceptivo, a correcção e produção do som-alvo, a estabilização da produção correcta, e a transferência e transposição. Estas quatro actividades desenrolam-se em quatro níveis operacionais sendo usadas primeiramente para o som-alvo isolado, depois para a sílaba, seguindo-se a palavra e, por último, a frase. Ao longo dos níveis e das actividades pode-se eventualmente recorrer a técnicas do condicionamento operante e/ou da abordagem linguística dos traços distintivos. De uma forma genérica, o início da terapia deve ser a nível do som isolado. Isto porque se considera que os problemas na articulação de um determinado som são os responsáveis pela articulação incorrecta de sílabas, palavras e frases. Quando, por exemplo, se diz a uma criança «Não digas /mAnanA/, diz banana» esta pode ter dificuldades em transferir a produção correcta do som /b/ para outras palavras que o contenham. Salienta-se, mais uma vez, que o início da intervenção tem de corresponder ao nível mais adequado de cada caso.
Segue-se uma breve descrição das principais tarefas usadas em cada uma das quatros actividades da Terapia Tradicional. Os exemplos dados serão maioritariamente relativos ao nível do som isolado. Salientamos, no entanto, que as mesmas técnicas e tarefas podem e devem ser extrapoladas para os restantes níveis.

1ª Actividade - Treino Sensório-Perceptivo

A ênfase desta fase de intervenção é colocada na audição e não na produção. O terapeuta desenvolve um conjunto de actividades com vista fundamentalmente ao treino auditivo e não ao treino oral.

1. Tornar o Som-Alvo Evidente:
• Identificação: dar ao som-alvo um carácter, ou personalidade, de forma a destacá-lo dos outros fonemas (e.g., /z/ é o som da abelha; /s/ um pneu furado).
• Isolamento: detectar um som em séries aleatórias apresentadas pelo terapeuta (e.g., «Vou dizer o nome de algumas figuras. Umas têm o som /s/, outras não. Quando ouvir o som coloque um feijão neste copo.»).
• Estimulação: bombardear os sentidos do paciente com o som-alvo (e.g., ler em voz alta histórias que contenham um grande número de sons-alvo.
• Discriminação: trabalhar no paciente a capacidade de detectar erros articulatórios produzidos deliberadamente pelo terapeuta e de os corrigir.
2. Reforçar a Auto-Escuta: o paciente deve ouvir-se a si próprio no sentido de ser capaz de detectar os seus próprios erros.
3. Evocar, Perceber e Predizer os Erros: treinar no paciente primeiro a capacidade de reconhecer o erro após a sua ocorrência, depois no momento em que o erro está a ocorrer e, por último, ser capaz de o prever. Na percepção retardada o terapeuta pode sinalizar o erro articulatório após um longo intervalo para que o paciente escute o que produziu. Na percepção simultânea o terapeuta pode, por exemplo, ler ou falar em uníssono com o paciente introduzindo uma variação no seu tom de voz (e.g., falar mais alto ou até parar de falar) quando este produzir um erro. Na predição do erro, o terapeuta pode dar amostras de enunciados perguntando ao paciente se ele acha que vai cometer alguma erro e pedindo-lhe de seguida para os repetir.

2ª Actividade - Correcção

O objectivo principal desta etapa é levar o paciente a aprender o novo som.
• Variação e Correcção: consiste em levar o paciente a novas posições e novos padrões motores.
• Aproximação Progressiva: método da moldagem onde o terapeuta produz o mesmo erro articulatório do paciente mostrando-lhe, de seguida, uma série de sons de transição até chegar ao som-alvo.
• Estimulação Auditiva: baseia-se na imitação simples e na repetição.
• Colocação Fonética: consiste na observação dos movimentos articulatórios do terapeuta e na imitação directa ou através de um espelho. Podem-se usar diagramas sobre os órgãos articulatórios, assim como espátulas ou outros instrumentos para indicar os articuladores envolvidos na produção do som-alvo e/ou para garantir um posicionamento correcto.
• Modificação de Outros Sons: consiste em pedir ao paciente para suster ou prolongar o som por um breve período de tempo introduzindo simultaneamente uma determinada movimentação da língua, lábios ou mandíbula. Esta variação do gesto articulatório vai resultar na modificação do som.
• Método da Palavra-Chave: usar tarefas que incluam palavras-chave, i.e., palavras onde o som-alvo não se encontra comprometido.

3ª Actividade - Reforço e Estabilização

O objectivo primordial é o de reforçar e estabilizar a nova produção articulatória. Nesta etapa deve-se usar uma hierarquia para consolidar a nova informaço adquirida: sons isolados, sílabas, palavras e frases.
• Som isolado: começar por pedir a repetição e prolongamento do som-alvo, primeiro de uma forma lenta e posteriormente de uma forma mais rápida. Combinar a repetição do som com outra actividade em simultâneo (e.g., escrever o som ou estalar o dedo).

• Som em Sílabas: ajudar a usar o som-alvo em todos os contextos fonéticos começando por sílabas de tipo CV, CVC, CCV, VC, . . .

• Som em Palavras: ajudar a articulação do som-alvo em palavras conhecidas e relevantes para o paciente. Deve começar-se por palavras simples.
- Técnicas de Reconfiguração: ensinar o paciente que as palavras são compostas por sequências de sons.
- Técnicas de Sinalização: consiste, por exemplo, em pedir ao paciente para prolongar o som inicial de FACA e para dizer o resto da palavra assim que ouvir um som previamente combinado (e.g., bater na mesa).

• Som em Frases: criar frases-chave que contemple o som-alvo.
- Fala em Câmara Lenta: terapeuta e paciente dizem a frase-chave de uma forma vagarosa.
- Fala em Eco: o paciente repete, ou imediatamente ou no fim do terapeuta falar, as frases produzidas por este.
- Fala em Uníssono: o terapeuta e o paciente dizem ao mesmo tempo as frases-chave.
- Situação de Correcção: o paciente identifica e corrige os erros produzidos pelo terapeuta (que deve começar sempre por erros óbvios).
- Representação de Papéis: o terapeuta pode recorrer à fantasia, ao teatro ou a dramatizações criativas.

4ª Actividade - Transferência e Transposição

Nesta última fase pretende-se automatizar o processo correctivo.
• Expansão da Situação da Terapia para Outros Contextos:
- Tarefas de Fala: dar ao paciente tarefas específicas que impliquem o uso do som-alvo (e.g., pedir ao paciente para pedir uma FACA à empregada com um longo /ffffffff/).
- Dispositivos e Penalidades de Verificação: atribuir tarefas que visem facilitar uma mais rápida consciencialização do erro (e.g., escrever num cartão a palavra onde comete um erro articulatório). As tarefas que visem penalizar o erro não podem ser emocionalmente negativas nem dolorosas; o objectivo do seu uso é apenas assinalar o erro. Pode-se pedir, por exemplo, para pôr um lápis atrás da orelha ou fechar um olho.
- Situações-Núcleo: criar situações específicas para a correcção dos erros (e.g., cadeira-mágica).
- Prática Negativa: consiste no uso deliberado e voluntário do erro articulatório com o objectivo de ajudar a tomada de consciência do erro. Sempre que o paciente comete o erro, o terapeuta pede-lhe primeiro para o repetir e depois para o corrigir. Esta técnica só deve ser usado em consultório e só quando o paciente já consegue produzir o som-alvo.

• Uso do Som-Alvo nos Diversos Tipos de Fala: treinar de forma sistemática a produção do som-alvo nas mais diversas situações de comunicação.

• Feedback Proprioceptivo: treinar o uso correcto do som-alvo apenas através das sensações e do movimento (e.g., pedir para falar murmurando ou com mímica; apresentar ruídos através de auscultadores aos dois ouvidos enquanto fala).

Canongia, M. B. (2000). Intervenção precoce em fonoaudiologia. Rio de Janeiro: Revinter.
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Yavan, M. Hernandorena, C. M., & Lamprecht, R. R. (2002). Avaliação fonológica da criança.
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